Sou contra trazer para o presente qualquer coisa que um dia nos tenha sido importante: o mais provável é que, após o longo afastamento, o reencontro deixe na boca nada além de um gosto de chá de losna. Mas como sou a primeira a quebrar minhas regras – e quebrá-las apaixonadamente –, fiz pipoca, peguei um guaraná gelado e pus o antigo DVD do filme “A História sem fim”.
Com exceção aos efeitos especiais toscos, o filme continua tão bom quanto na minha infância – e eu continuo apaixonada por Atreyu. O fato dele ter treze anos no filme e eu 32 na vida real não é impedimento: sonhos servem para isso mesmo. Além do mais, eu nunca vi um menino com jeito tão másculo quanto Noah Hathaway. E aquele cabelo, Madre Santíssima, o que é aquilo? Meninos até os treze anos, antes da testosterona explodir, costumam ter cabelos lindíssimos. Uma vez adultos, porém, seus fios espigam, ressecam, enrugam e caem – com exceção aos de Ian e Johnny Deep. Fui procurar no Google como Noah está agora: encontrei um tatuado loiro mais velho do que eu, cujos cabelos e pele precisam urgentemente de uma hidratação. Opa: chá de losna. Voltemos ao filme.
Um menino que acabou de perder a mãe e é constantemente humilhado pelos colegas de escola se fecha num porão para ler um livro especial. Nesse livro, os habitantes de Fantasia estão fugindo do Nada que avança célere destruindo o reino e deixando a Imperatriz à beira da morte. A única salvação de todas as tribos é o menino Atreyu. Depois de mil peripécias, ele descobre a solução: uma criança humana precisa dar um novo nome à Imperatriz. Quando a destruição é iminente, o menino-leitor percebe que sempre fez parte daquela história e que é ele quem deve salvar Fantasia (o Nada se alimenta do ceticismo, da incapacidade de sonhar cada vez maior dos homens). O menino-leitor dá, então, à Imperatriz o nome de sua mãe. Na última cena, montado num dragão, ele voa sobre Fantasia, absolutamente restaurada e vigorosa, e entra com dragão e tudo na vida real para dar o troco aos seus colegas malvados. Falando assim parece uma besteira, mas não é. E, de alguma forma, eu sou o menino-leitor: eu me livro dos meus algozes apenas em Fantasia.
Quando estou me exercitando na esteira, costumo transformar em prazer experiências que me humilharam. Minha chefe é transferida para a Síria; Marcelo me espera na porta do teatro; minha prima esnobe se apaixona por um militante do MST; Diogo, horrorizado com a chatice das loiras-peitudas, volta morrendo de saudade; ganho uma grana extra e vou para a Austrália estudar inglês; Ian, numa noite de chuva morna, se mostra super romântico e a fim de transar comigo: fantasia. E dessa forma, viver se torna um pouco menos insuportável. A verdade, porém, é que o Nada venceu essa guerra faz tempo – e eu apenas finjo que nada sei.
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